Começo este artigo com esse questionamento para você.
Adaptei essa reflexão da obra de Judith Butler, filósofa pós-estruturalista, e uma das pioneiras em explorar as questões de gênero. Em Precarious Life (2004), Butler explora o conceito de precariedade, que se refere à vulnerabilidade e às exposições à violência que algumas vidas enfrentam em maior grau devido a normas sociais que decidem quem é considerado “humano” ou digno de proteção e estima. Foi por meio de algumas “escutas” que decidi escrever sobre gênero e o mercado de trabalho.
Recentemente, Déia Freitas, fundadora do podcast Picolé de Limão, mencionou que, toda vez que entra em um estabelecimento, olha ao redor para buscar diversidade e inclusão.
Desde então, venho refletindo e fazendo o mesmo movimento: observar ao meu redor e analisar o ambiente. Infelizmente, não encontrei o que buscava nos espaços profissionais que frequento. Diante disso, busquei lideranças e fiz algumas perguntas para entender se adotam esse olhar inclusivo em suas contratações. Também ouvi o outro lado: como se sentem as pessoas que enfrentaram e enfrentam dificuldades para ingressar e se manter no mundo corporativo?
Invisibilidade trans e o ambiente de trabalho
Quando falamos sobre invisibilidade trans no ambiente de trabalho, é inevitável não pensar nas normas que determinam quem merece ser visto e reconhecido. Judith Butler, em sua teoria da performatividade de gênero, nos faz refletir como, em muitos espaços, pessoas trans precisam se adequar aos papéis tradicionais para serem aceitas. Quem não se encaixa nesses padrões acaba sendo silenciado ou marginalizado, deixando de ser visto ou considerado.
A teoria da precariedade de Butler fala justamente dessa vulnerabilidade. E, no ambiente corporativo, isso acontece quando pessoas trans sentem que precisam esconder quem são para evitar preconceito ou discriminação. Muitas vezes, acabam omitindo partes de sua identidade, seja no uso de um nome que não reflete seu gênero, seja evitando compartilhar aspectos de sua vida pessoal por medo de retaliação. Esse silenciamento é uma forma de precarização, que impede essas pessoas de se sentirem plenas no trabalho.
Estudos, como o realizado pelo National Center for Transgender Equality, mostram a realidade disso. De acordo com essa pesquisa, 90% das pessoas trans já enfrentaram algum tipo de discriminação no trabalho. Além disso, quase metade dessas pessoas (47%) relataram que precisaram esconder sua identidade de gênero no ambiente profissional para evitar represálias. Esses números revelam como a invisibilidade se manifesta de forma concreta: é um mecanismo de defesa, mas que reforça o isolamento e a vulnerabilidade.
Impacto nas empresas
Quando as empresas não criam um ambiente seguro e acolhedor, perdem muito mais do que apenas diversidade de gênero. Empresas que não promovem inclusão acabam perdendo talentos que poderiam trazer inovação e perspectivas únicas. Segundo uma pesquisa do Diversity Council Australia, organizações inclusivas registram 19% mais inovação e são 35% mais propensas a manter talentos em comparação com aquelas que não são.
Esses números mostram que promover um ambiente inclusivo não é apenas uma questão de justiça social, mas também de inteligência empresarial. Quando as empresas não reconhecem a diversidade de gênero, criam barreiras para o crescimento e a inovação, impactando diretamente sua produtividade e retenção de talentos.
Além disso, dados da McKinsey & Company reforçam esse ponto: as empresas com maior diversidade de gênero têm 25% mais chances de superar a média do mercado em lucratividade. Esses números comprovam que a inclusão de pessoas trans e a criação de ambientes de trabalho acolhedores são essenciais não só para a equidade, mas também para o sucesso empresarial.
O papel das lideranças inclusivas
Nas conversas que tive com lideranças empresariais, ficou claro que o sucesso em atrair e reter talentos está diretamente ligado a políticas inclusivas. Daniel Silva, fundador da Instant School, comentou: “Inclusão significa criar um espaço onde todas as pessoas, independentemente de suas identidades, se sintam seguras, respeitadas e valorizadas. Na nossa empresa, a inclusão é essencial para promover um ambiente de aprendizado contínuo, inovador e colaborativo, onde diferentes perspectivas enriquecem nosso trabalho e impactam positivamente nossos estudantes.”
Ele mencionou que, além de treinamentos focados em equidade de gênero, sua empresa passou a adotar políticas de pronomes inclusivos, uma prática simples, mas transformadora no reconhecimento e respeito às identidades de todas as pessoas.
Um exemplo interessante é o da IBM, que há anos trabalha para garantir a inclusão de pessoas trans em seu ambiente de trabalho. Além de treinamentos regulares, a IBM oferece suporte à transição de gênero e políticas voltadas ao uso correto de pronomes, criando um ambiente onde as pessoas se sentem respeitadas e seguras para expressar sua identidade. Empresas que adotam essas práticas criam um ciclo de confiança e colaboração entre todos os funcionários.
Relatos de vivências trans no ambiente corporativo
Miguel Duque, Analista de Relacionamento Sênior no Sam’s Club, compartilhou que, muitas vezes, não se sente confortável em falar sobre sua identidade trans no ambiente de trabalho por medo de discriminação. Ele relatou que já enfrentou situações constrangedoras com familiares e em órgãos públicos, como o INSS. Apesar desses desafios, Miguel conta com uma rede de apoio e faz terapia regularmente, o que tem sido essencial para seu bem-estar.
Esses relatos deixam claro que há muito a ser feito. Pessoas trans sugerem que mais empresas invistam em treinamentos sobre diversidade e ofereçam políticas que respeitem suas identidades, como espaços neutros de gênero, planos de saúde que cubram transições, e a criação de um ambiente onde todas as pessoas se sintam seguras para ser quem são.
A teoria de Butler sobre performatividade de gênero e precariedade ajuda a entender por que a invisibilidade trans persiste no ambiente de trabalho. A precarização dessas vidas se manifesta na necessidade de se ocultar para evitar discriminação, o que reforça o ciclo de vulnerabilidade e isolamento. No entanto, promover a inclusão não só combate essa invisibilidade, mas também traz benefícios tangíveis para as empresas.
Conversando com Roberto Casagrande, que atua em uma posição de liderança, ficou claro que ainda há resistência por parte de muitas empresas. Ele destacou que o setor de Recursos Humanos precisa urgentemente tornar os processos seletivos mais plurais e inclusivos.
É essencial que líderes empresariais adotem políticas inclusivas e reconheçam as identidades de gênero em toda sua diversidade. Ao criar um ambiente onde todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, possam se sentir visíveis e seguras, as empresas fortalecem suas culturas organizacionais, aumentam suas chances de sucesso e inovação. A visibilidade é um passo crucial para o avanço de uma sociedade mais justa e de um ambiente de trabalho mais próspero e colaborativo.
BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. Londres: Verso, 2004.
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York: Routledge, 1990.
DIVERSITY COUNCIL AUSTRALIA. Out at Work: From Prejudice to Pride. Disponível em: https://www.dca.org.au/research/project/out-work-prejudice-pride. Acesso em: 22 out. 2024.
MCKINSEY & COMPANY. Diversity Wins: How Inclusion Matters. 2020. Disponível em: https://www.mckinsey.com/featured-insights/diversity-and-inclusion/diversity-wins-how-inclusion-matters. Acesso em: 22 out. 2024.NATIONAL CENTER FOR TRANSGENDER EQUALITY. The Report of the 2015 U.S. Transgender Survey. Washington, DC: NCTE, 2016. Disponível em: https://transequality.org/issues/us-transgender-survey. Acesso em: 22 out. 2024.
LinkedIn Entrevistados:
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Escritora: Camila de Oliveira Sanches
Analista de Implantação | Customer Success, Problem Solving