Convido a quem se interessar pelo tema a mais uma reflexão que, para mim, já está em curso há um tempo considerável mas que, neste momento, mostra-se inovadora por expressar conceitos que, em mim, estão em consolidação e fortalecimento e sem nenhuma pretensão de imutabilidade. Regra geral, não há espaço para “definições definitivas”. Tudo muda o tempo todo. O que não muda é o fato de sermos, todos, nada mais, nada menos, que uma pequena parte de um todo maior, quer queiramos e aceitemos, quer não queiramos e não aceitemos. Todos derivados. E hierarquicamente superiores, ou não, somos interdependentes. E interdependentes, temos autonomia limitada por situações maiores ou menores do que nós. E quem se imagina maior, seja grande ou pequeno, terá o desprazer de se deparar com sua insignificância, a qualquer momento. Sim, porque há pequenos gigantes, há gigantes minúsculos, há pequenos e grandes indivíduos e, entre todos os tamanhos, a autopercepção dessa dimensão também é variável, e nem sempre condizente com a realidade exterior. Particularmente, penso que somos todos pequenos o suficiente para sermos dependentes, necessariamente.
Mas quantas vezes já paramos para pensar sobre o que somos, e nessas tantas vezes, quantas vezes concluímos algo a respeito? E sim, há quem conclua. E quando conclui, acerta? E se acerta, preserva-se ou se amplia? Evolui? Aceita-se, apenas, ou se melhora? E o que temos em nós, apenas sobre nós? O que “somos”, senão um produto com algumas poucas ou várias especificidades divergentes do comum, que é o padrão? A fórmula básica é que somos humanos. Este é o padrão, para nós – sermos “humanos”. As variáveis são infinitas. Há o comum entre todos, portanto, mas não há o absolutamente igual, nunca, e com todo o peso que carrega essa palavra: “nunca”. Nunca haverá dois seres idênticos. Haverá seres semelhantes e haverá seres descendentes de ascendentes dos quais herdaram, sempre, mas legaram, apenas parcialmente.
Também há similaridade entre legado e herança, mas não propriamente equivalência ou sinonímia entre os termos, nem em sentido figurado, nem em sentido literal. Embora já tenham sido classificados como sinônimos, e haja até convergência em alguns pontos, também possuem diferenças etimológicas e históricas. A origem da palavra legado remonta às passagens bíblicas e expressa sentido mais amplo, mais abrangente do que a palavra herança, na medida em que considera não apenas os aspectos materiais, mas inclui sobremaneira os aspectos espirituais, emocionais, educacionais, culturais. Do latim legatus, o legado representava um indivíduo portador de ordens ou conceitos de terceiro, enviado para representá-lo, enquanto herança, também derivada do latim haerentia, significava vinculação, ligação, o que estava ligado, vinculado, dependente, e isso, no sentido material.
De fato, somos todos legados e temos, todos, heranças. Todos. E para os menos atentos quanto a estes sentidos primários, nenhum desses conceitos está atrelado diretamente à riqueza, derivada de rico, que está no gótico reiks, e significa poderoso, e é derivado do Indi-europeu reg – que significa andar em linha reta, e que gerou, posteriormente, no latim, a palavra rex, que significa rei. Portanto, embora essa derivação motive a associação que se faz entre riqueza e poder, estaria mais adequada se associasse poder e retidão de caráter, como pretendia sua estrutura original. Riqueza também não tem nenhuma correlação etimológica com legado ou herança. Legamos conceitos, ordens ou missões, envolvam ou não o aspecto pecuniário, e herdamos estruturas materiais, sejam ricas, sejam pobres.
O significado do legado associado às tradições perdeu sua força para o conceito de poder que decorre da inversão social de valores que a palavra latina denarius – dinheiro passou a representar. O dinheiro, que é muito necessário e positivo, que tem função social e que deveria ser empregado como mero instrumento de ajuste entre os povos em busca de melhorias coletivas, passou a expressar poder incontestável, já que envolve capacidade de comprar, inclusive os valores morais de uma grande parcela de indivíduos e foi aí que houve a deturpação problemática.
Poder “quase” absoluto, porém, o dinheiro compra qualquer “coisa”, algumas “pessoas”, mas jamais poderá comprar quaisquer “valores” ou todas as pessoas, ou todas as melhores condições existenciais das pessoas – que são justamente aquelas que não têm preço. Nas mãos certas, ferramentas oportunas. Nas mãos erradas, armas criminosas.
Ah, mas há armas benéficas? Depende do ponto de vista. Em defesa do seu bem maior, a vida, se necessárias forem, que sejam disponíveis. É o que penso. Ou não? Quem gostaria de se ver obrigatoriamente indefeso diante de um animal feroz, por exemplo? Ou de um ser desequilibrado que poderá lhe tirar a vida, ou a de um filho, em um lapso de um minuto?
Infelizmente, ainda não vivemos em uma sociedade coesa, coerente e pacífica. E então vale a escolha. Diante de um cenário onde a morte é certa e se pode tentar sobreviver, valeria a pena escolher morrer sem opção de reação? Em sociedades democráticas, a escolha do cidadão é livre, claro que sob sua total responsabilidade pessoal, e em sociedades ditadoras, a rendição é obrigatória. Não há oportunidade à legítima defesa. Outra questão bastante polêmica, não é mesmo? Mas voltemos ao legado e à herança…
Quantos de nós temos a coragem de soterrar nosso eu em nossas próprias raízes, em busca de explicações verdadeiras sobre padrões que nos integram, muito clara e evidentemente, e que não raras vezes desconhecemos, ou que tantas outras conhecemos, mas abominamos e, neste sentido, para fugir da realidade que nos constitui, negamos o que somos? Mas não há como fugir do que nos compõe. Não há como fugir de nós mesmos. Ou há? Viver integralmente sob o manto da fantasia e a “proteção” da máscara talvez seja insuportável. Ou não?
A grande questão é que, muito frequentemente, mesmo quando cientes de determinadas dificuldades que apresentamos em nosso processo de crescimento, ao invés de buscarmos mudança de comportamento e correção, preferimos a negação e a acomodação, não é mesmo? Inclusive porque “há traços que não nos pertencem”, de acordo com nossa superficial autopercepção, e que são facilmente identificados por terceiros que, por sua vez, quase sempre, também têm dificuldade de assumir os seus próprios traços indesejados, mas uma enorme facilidade na identificação de traços inoportunos, desde que alheios. Aqui temos algo comum sobre comportamento humano? Penso que sim.
E quanto aos traços que nos compõem? De onde vêm? Da genética? Da bagagem espiritual? Do meio social, onde vivemos, e convivemos? Eu diria que da somatória de todos esses fatores, com variáveis de maior ou menor relevância, diretamente atreladas, é que se compõem o comportamento direcionado à mínima adequação social, ou à ausência dela.
A questão do individuo como único responsável, desde sempre, por tudo o que oferece ao meio em que está inserido, não me convence. A bagagem espiritual, essa sim, individual, também é sempre reforçada pelo aprendizado do meio no qual se está inserido – a família, a cultura, e a sociedade que nos governa também nos determinam. Os pais que nos orientam, determinam-nos. E é claro que apenas a nós mesmos caberão as responsabilidades por nossos atos e escolhas e apenas a nós mesmos caberão as consequências, portanto, está acatada amplamente, sob meu ponto de vista, o conceito de que as atitudes de hoje determinam os resultados de amanhã.
Diante disso, o que fica é a certeza de que o indivíduo precisa enxergar além do que lhe foi transmitido como verdade, caso queira, ele mesmo, promover mudanças essenciais. Nem sempre conseguiremos usufruir dos resultados benéficos dos nossos aprendizados ao ponto de uma reversão completa em nosso quadro atual por um longo prazo, já que a vida é curta, mas até onde conseguirmos deixar nossa trilha melhorada, estaremos contribuindo com as futuras gerações e, talvez, com a nossa descendência.
Algumas frases populares, tais quais: “Filho de peixe, peixinho é”; “O fruto nunca cai longe da árvore que o gerou”, por exemplos, têm essa lógica e, neste caso, também não se trata apenas do fator genético, porque é necessário que consideremos a aplicação prática do conceito existencial com todas as suas nuances. Da mesma forma que é possível a enxertia, no âmbito vegetal, no reino animal temos a inseminação artificial e a adoção, por exemplos. Neste sentido, o que se tem não é a extensão, a construção da base projetada a partir dos cuidados e da educação direcionada pelos incubadores, pelos tutores, pelos pais adotivos, ou, seja lá o que for?
Neste contexto, então, não há que se falar exclusivamente em genética, embora seja inquestionável sua força e seu papel, na ordem das coisas. Questões orgânicas, físicas, comportamentais, emocionais têm correlação direta com a genética. Mas não é só isso…
Nessa linha de raciocínio não é necessário muito esforço para percebermos também a lógica conceitual da constelação familiar, que atualmente tem aplicação na psicologia, na medicina, no direito e em várias outras áreas, alastrada inclusive ao nicho empresarial.
Embora seja questionada por algumas correntes de pensamento científico e religioso, já comprovou sua eficácia, científica e empiricamente. Por se tratar de metodologia recente, cientificamente ainda há muito a ser explorado. Muitas pesquisas ainda estão em fase de implantação e validação, mas já há estudos e experimentos convalidados.
Independentemente dos protocolos, é importante considerar a fundamentação e os resultados da aplicação prática do modelo terapêutico de Bert Hellinger, que está embasado em estudos anteriores. Atualmente, o método tem respaldado decisões judiciais por iniciativa do magistrado brasileiro Sami Storch, estudioso da teoria de Hellinger e aplicador da prática no recém-constituído Direito Sistêmico (que não se confunde com o Direito Sistêmico de Niklass Luhmann).
Como toda inovação, que traz algumas afrontas aos conceitos tradicionais e ameaças aos interesses dos envolvidos em sistemas pré-existentes, mesmo que recentemente implantados, a Constelação Familiar tem sido amplamente alvejada por críticos que trazem à tona algumas impressões distorcidas, às vezes motivadas por traduções inadequadas e por associações equivocadas, que agora esbarram em temas atuais sensíveis.
O ponto crucial é que a sensibilidade precisa ter visão e tato para não incorrer no erro da estagnação em si mesma. O que penso é que as lutas precisam ser legitimadas por fatos, não por meras impressões. Na medida em que se quer repudiar, faz-se obrigatório conhecer, necessário abandonar a superficialidade e mergulhar no entendimento do que se pretende refutar. Não se contesta o que não se compreende. E, de fato, a Teoria Geral dos Sistemas tem sido trabalhada desde a década de 30, por Ludwig Bertalanffy, que procurou desenvolver leis que explicassem o funcionamento de sistemas gerais, independentemente de sua natureza, justamente porque é facilmente observável tal lógica da correlação.
E você? Consegue identificar as relações sistêmicas nas leis universais? Sim? Não? Ok. Mas o mais importante de tudo – você pretende deixar legado, herança, riqueza e dinheiro, ou para você os significados são os mesmos?